sábado, 31 de janeiro de 2009

PARADIGMA DO PRIMEIRO PECADO

Paradigma, tanto pode ser uma teoria, uma idéia ou uma estória - algo que a grande maioria aceita - sobre a qual seus mentores continuam construindo no sentido de torná-la cada vez mais real. E na medida em que essa expectativa se realiza, como é nesse caso, se transforma em uma história, mesmo se a documentação utilizada para lhe dar sustentação é ilusória.
Estamos falando de Adão, o homem que, segundo o conto do livro Gênesis, por ter sido o precursor da humanidade, e ter pecado, inseriu a maldade na natureza de todos os homens. Sim, por representar um entendimento, quando um paradigma é acolhido, passa a ser a única verdade aceita e reconhecida no meio em que ele é adotado.

No entanto, como as pesquisas continuam ratificando cada vez mais enfaticamente, a única possibilidade de ter existido um Adão predecessor da humanidade, é este Adão ter sido um Australopithecus, porque é com o chimpanzé que a humanidade compartilha mais de 98% do seu patrimônio genético.
No que tange ao pecado - ou maldade moral - como todos sabemos, ele existiu, permanece e persistira, mesmo se em proporção decrescente, independentemente do empenho da sociedade em combatê-lo, isso porque, pela lei de causas e efeito, nada acontece se não tiver que acontecer. Mesmo a morte, considerada o crime maior, se for despida dos cenários pintados pelas religiões que nasceram da bíblia, nada mais é do que uma passagem de uma estação para a outra, assim como sempre depois da primavera chega o verão.
Recentemente, em um canal de TV operado pela ala carismática do catolicismo, um frei, ótimo orador, recebeu a seguinte pergunta de um telespectador: “O que a igreja pensa do mal que é praticado no mundo?” Que mal perguntou o frei? O cósmico, que bombardeia o planeta com meteoritos? O da Terra, com seus terremotos, furacões e tsunami assassinas? O dos animais selvagens ou o do homem que se manifesta por meio da violência que pratica? O mal faz parte do contesto do mundo porque é Universal, finalizou o religioso. Assim fazendo, fugiu de um dialogo que como veremos é muito difícil de sustentar.

Para nos, não existe uma razão compreensível que indique de onde vem o mal moral, disse E. Kant, em sua tese “a religião nos limites da razão”.
O mal é uma evidencia, mas a sua razão permanece obscura. Além das razões particulares das atitudes moralmente reprováveis, a raiz do mal que se espraia tanto no nível individual como no coletivo, continua envolvida na sombra do mistério, um mistério que aparentemente carrega consigo, além do motivo do mal, o fato de não ser deleitável. Este caráter misterioso, segundo Kant, só existe devido à incapacidade de encontrar uma resposta racional adequada ao porque do mal moral.
A nossa modesta contribuição, diz ele, não entende, e muito menos pretende, resolver uma problemática que provavelmente não alcança nenhuma resposta definitiva, mas deseja examinar a tentativa de solução formulada na segunda metade do século XIII por um pensador que marcou a historia da filosofia ocidental. Trata-se de Tomas de Aquino, que como muitos outros contemporâneos, enfrentou o problema espinhoso do mal e elaborou uma resposta que, evidentemente, só podia se desenvolver e ser aceita no regaço da cultura do seu tempo.
A tentativa dessas paginas é reconstruir e esclarecer um aspecto particular da ética tomasina: aquela da relação entre o mal moral – pecados, vícios etc. - cometido a nível individual, e o mal Universal, que aparentemente está na sua raiz e carrega consigo o segredo do seu caráter de inexorabilidade. Na ótica medieval, e tomasina em particular, não existe uma explicação racionalmente valida que não apele a um conceito universal: No nosso caso, então, não é possível esplicar a razão do mal moral que se situa no plano individual, sem recorrer a uma razão que possua um caráter normativo, e por redundância, a um caráter universal.
Entende-se que Tomas de Aquino discutiu esta problemática nos termos em que ela podia e era discutida no XIII século, por isso que, o que hoje podemos chamar mal universal, era indicado como “pecado original”, enquanto o mal que é praticado pelos indivíduos era indicado como “pecado (ou vicio) atual”.
Procuraremos esclarecer a articulação destas duas realidades no pensamento de Aquino, baseando-nos, essencialmente, nas analises presentes na “Summa theologiae (I, qu. 95; Ia-IIae, qu. 71-85; IIa-IIae, qu. 163, que integraremos com outros testos significativos (Commento al II libro delle Sentenze, d. XXX, qu. 1; Summa contra Gentiles, IV, 50-52; De malo, qu. 4).
Recordaremos, inicialmente, os elementos salientes na visão tomasina de Adão inocente, e examinaremos em que consistiu o pecado, esclarecendo a relação entre o pecado individual e o pecado original, e formularemos algumas observações conclusivas no mérito da possível superação do mal.

1 – Condição de inocência de Adão.
Qual foi a condição de Adão no momento da sua criação? Clarear este aspecto é essencial para entender a natureza do seu pecado, sendo este uma transgressão ou derivação em relação ao seu estado de “inocência”.
Na questão do numero 95 da Summa Teológica, Tomas de Aquino diz que Adão foi criado justo, em outras palavras, reto e honesto, de conformidade com o versículo do Eclesiastes 7:30: “Deus fecit hominem rectus”.
Esta justiça original, própria do status de natureza, consistia na submissão da razão a Deus, no sentido da razão do corpo e da alma. Esta relação de submissão, que entende também a hierarquia das faculdades que lhe são implícitas, obedecia à finalidade ultima para a qual o homem era destinado: a contemplação a Deus.
Esta finalidade não podia ser realizada a não ser através das faculdades superiores do homem, ou seja, do seu componente intelectual, assim, para obedecer a este fim ultimo, tornava-se necessário o domínio da razão sobre as demais faculdades da alma e, de forma mais acentuada, o domínio sobre o corpo.
No estado natural, o primeiro homem era justo no sentido que tudo, nele, estava orientado na direção da razão pela qual havia sido criado. A justiça original era assim fundada sobre uma estrutura interior de Adão. Em outras palavras, a justiça original residia na articulação harmoniosa dos componentes do primeiro homem em função do fim sobrenatural ao qual estava destinado. Ora, segundo Tomas, a retitude do estado de natureza, enquanto orientada na direção de um bem sobrenatural, não podia ser outra coisa: um dom divino, o que corresponde a um dom gratuito. A justiça inicial na qual Adão foi criado, era ao mesmo tempo um bem natural e um dom da graça divina, conferida ao homem para sustentá-lo durante a sua caminhada em direção à visão de Deus.
Graças ao ordenamento harmonioso das faculdades próprias da justiça original, o primeiro homem era privado das paixões negativas, como o medo e a dor, mas também das positivas como o prazer e o desejo. O perfeito equilíbrio das faculdades inferiores, fazia com que Adão fosse somente estimulado pelas paixões como o prazer, o amor e a esperança em relação ao bem, paixões estas plenamente harmonizadas com o padrão racional.
É necessário sublinhar, no entanto, que para Tomas de Aquino as paixões, em si mesmas, não representavam um mal, porque estas acompanham todos os seres humanos enquanto compostos de corpo e alma, portanto naturais, ma se tornam um impedimento à consecução do fim ultimo se não são submetidas à guia da razão.
Como em outros muitos aspectos, aqui também Aquino aplica o principio da ordem, segundo o provérbio ”bonum universi est bonum ordinis” que transforma cada realidade em uma coisa boa na medida em que ocupa o lugar que lhe cabe na hierarquia do real. Neste caso especifico, a aplicação deste principio permite que as paixões não sejam exclusas, mas que sejam integradas situando-as no seu devido lugar na hierarquia das atribuições da alma humana. Podemos assim imaginar Adão inocente, como um ser dotado de paixões como o desejo, o amor e a esperança do bem.
Estas paixões eram de fato plenamente compatíveis com a virtude que ele possuía, sendo estas ultimas perfeições porque, graças a elas, a razão é submetida a Deus, e as faculdades inferiores submetidas à razão. A perfeição do estado de natureza implicava, deste modo, na posse de todas as virtudes, seja no estado atual (entendendo virtude a caridade, a justiça, a fé e a esperança), seja como habito (entendendo virtude a penitencia e a misericórdia).
Nesse momento, resumindo os dados até aqui recolhidos, podemos dizer que no estado de natureza de Adão, este possuía a justiça original - paixões nobres como o amor e a esperança - alem de todas as demais virtudes.
A perfeição desse estado de coisas consistia na articulação harmoniosa de todos os componentes do ser humano, endereçados pela razão à finalidade ultima, uma vez que esse era o seu objetivo desde o momento da sua criação por ter sido feito à imagem de Deus. Nesse momento, o primeiro homem só se distanciava da condição Angélica pelo seu componente corpóreo, que mesmo assim era submisso a instancia espiritual. O mal e a dor lhe eram estranhos, e o seu ser almejava exclusivamente o bem.
2 – o pecado de Adão.
Como se sabe, segundo o mito bíblico transmitido pelo livro Gênese, a condição de perfeição e de harmonia do estado de natureza, foi manchada pelo pecado de Adão, porque cedeu à tentação e ao desejo de um bem. Qual foi a natureza desse pecado, desse primeiro mal que teria sido o responsável pela concupiscência da inteira humanidade?
Os pensadores medievais deram inúmeras respostas a essa interrogação. A mais difundida foi aquela de matriz agostiniana, que considerava a concupiscência como o elemento constitutivo e formal do pecado original. Daí, entendendo-o como tendência ao mal inserido nas faculdades sensitiva, adotou a concupiscência para esplicar o pecado de Adão ao longo do XII século, graças, entre outras coisas, à sustentação que lhe foi dada por Pietro Lombardo, o arquiteto italiano que construiu em Veneza a igreja de Sta. Maria dos Milagres.
Esta teoria, contudo, foi acompanhada por outras interpretações e soluções: a escola de São Vito, por exemplo, introduziu a ignorância como sendo uma das causas do pecado do primeiro homem, enquanto Abelardo, seguido pela escola porretana, inovava radicalmente considerando que o pecado original presente em cada individuo, não implicava em uma verdadeira e efetiva culpa, mas refletia somente a necessidade de assumir a danação eterna por causa da culpa do primeiro homem.
Anselmo de Canterbury, por sua vez, interpretou o pecado original como a privação da retitude da qual Adão inocente gozava enquanto no estado de natureza pura. Os grandes mestres do XIII século re-elaboraram estas tradições e formularam teorias de ascendência agostiniana e anselmiana.
A perspectiva anselmiana foi retomada particularmente por Tomas de Aquino, que fez da retitude e da justiça original o termo de confrontação do seu ponto de vista. Utilizando seu poder analítico, Tomas levantou uma serie de interrogações cuja resposta viria a permitir a composição do quadro da sua concepção. À pergunta se o pecado original havia sido cometido por orgulho, Aquino responde com uma exposição muito significativa para a nossa problemática. O pecado, ele precisou, consiste em uma ou mais formas de desordem “inordinatio”, e, ainda antes de se consolidar em um ato completo, se realiza como um movimento da alma em relação ao seu fim. Conseqüentemente, o primeiro pecado resulta de um desejo descontrolado. Segundo Tomas, não se trata de um desejo carnal, sendo o corpo, no estado de natureza, perfeitamente submisso à alma, mas de um desejo descontrolado porque não previsto pela própria natureza. Mais precisamente, este desejo era por ter mais “excelência”, em outras palavras, devido à sua semelhança com Deus, Adão almejava possuir mais conhecimento em relação ao bem e ao mal. Por ser assim, Adão, pecou por orgulho, porque o desejo surgiu por almejar um bem desmedido e inadequado à natureza humana.
Ora, aquilo que para Tomas constituiu o exemplo do pecado original, em verdade reside na desordem e no funcionamento desregrado das faculdades que dizem respeito ao fim ultimo. Por isso, o pecado original resultou em uma definitiva dissolução da harmonia e da retitude que caracterizavam o estado de natureza. O primeiro pecado subverteu a ordem das faculdades da alma, a sua orientação, e a sua submissão ao fim ultimo: “est enim quaedam inordinata dispositio proveniens ex dissolutione illius harmoniae in qua consistebat ratio originalis iustitiae”. A dissolução daquela harmonia abriu a porta que fez com que as faculdades passassem a se endereçar ao próprio bem particular, subvertendo, assim, a ordem hierárquica que a guiava à obtenção do bem supremo.
O pecado original, deste modo, para Tomas, não é principalmente ou essencialmente devido à concupiscência: esta intervem como elemento material, mas não define formalmente a transgressão de Adão. Do ponto de vista formal, a causa do pecado de Adão tem que ser procurada na relação com a justiça que caracterizava o estado de natureza. Consistindo essa na submissão do homem a Deus, o pecado que corrompeu o estado de natureza só pode derivar da vontade de se desligar do fim ultimo e da tentativa de se subtrair à submissão a Deus. O elemento formal do pecado, então, é a privação da retitude e da justiça original, enquanto o elemento material reside na concupiscência entendida como desejo desordenado.

Esta definição, uma aproximação da solução tomasina com a anselmiana, é importante, porque diz respeito à exemplaridade e à transmissão do pecado original: não sendo esse causado por uma desordem inserida nas faculdades sensitivas, mas a subversão ao ordenamento equilibrado de todas as faculdades, o seu elemento formal é reconhecível em todos os pecados individuais, em cada transgressão, ou ato de maldade cometido pelo homem.
3 – pecado individual e pecado original: elementos da sua relação.
Chegamos assim ao nosso quesito principal: qual é a relação do mal de cada individuo no que diz respeito ao pecado de Adão? Qual é a articulação entre os males que cada individuo comete particularmente, e o mal que deixou a sua marca indelével sobre toda a humanidade? Um importante esclarecimento se encontra na analogia da relação entre o pecado atual e o pecado original, de um lado, e o pecado pessoal e pecado de outra natureza, do outro. Pecado, na acepção da palavra, é o pecado atual, cometido voluntariamente por um individuo. O pecado original, também foi um pecado pessoal, porque foi cometido por Adão. Entretanto, como Adão foi o primeiro homem da estirpe humana, ele não foi só um individuo em particular, mas aquele que permitiu realizar o desejo de Deus, ou seja, da raça humana. Assim, ele representa a origem humana de cada ser humano.
Adão foi, concomitantemente, pessoa e natureza: por isso cada individuo, em si mesmo, a ele está ligado por ter sido ele o representante da unidade da espécie: “omnes homines qui nascuntur ex Adam, possunt considerari ut unus homo, inquantum conveniunt in natura”. Em virtude dessa amarração – platonicamente entendida – de participação à mesma natureza, a condição de Adão exemplifica a condição humana seja no bem como no mal.
No âmbito da nossa problemática, isso significa que o pecado de Adão não foi somente um pecado pessoal, mas também um pecado de natureza: “primum autem peccatum primi hominis non solum peccantem destituit proprio et personali bono, scilicet gratia et debito ordine animae, sed etiam bono ad naturam communem pertinentem”. Por isso o pecado original é transmitido de geração para geração a cada individuo, e assim sendo, cada um o trás em si mesmo esculpido na própria natureza como uma marca indelével. Esta transmissão é inelutável: isso significa que a “vontade” de cada individuo já é por natureza impura, porque é despida da retitude e da justiça original (elemento formal do pecado). Conseqüentemente, as faculdades sensitivas se endereçam desordenadamente no rumo dos próprios bens particulares (os bens materiais).
Então, a perda da retitude original está na raiz de cada pecado e de cada mal: cada pecado atual e pessoal, apresenta, assim, o mesmo elemento formal, quer dizer, a mesma desordem e desregulamentação das faculdades, porque estas não mais se submetem à razão. Este fato também impede que o verdadeiro bem seja procurado.
O mal individual, portanto, está estritamente ligado ao mal universal que golpeia a inteira humanidade: é um relacionamento que deriva, no que diz respeito o aspecto formal do vicio ou do pecado - a desordem e a desregulamentação - enquanto o aspecto material permanece pessoal em quanto produzido pelo livre arbítrio de cada individuo.
A universalidade do pecado de Adão, se inscreve, assim, na condição de cada individuo: o pecado atual e pessoal (culpa personae), trás sempre consigo o pecado original e universal (culpa naturae).
É importante relevar como, no âmbito desse contesto, Tomas de Aquino dá provas de um realismo muito acentuado, sobretudo se comparado com o “realismo moderado” da historia dos universais, o pecado de natureza cometido por Adão influiu efetivamente em cada individuo, e desta influencia depende formalmente o seu destino moral.
Em base a articulação do individuo com a própria natureza, o mal do homem apresenta um caráter não-deleitável. O pecado original é, de uma forma ou de outra, sempre presente – como um “languor naturae” diz Tomas, condicionando, portanto, a ação do individuo. Essa conseqüência é admitida por uma boa parte dos pensadores medievais, e entre eles Tomas de Aquino. Nenhuma criatura, ele declarava, se considerada no plano da sua condição natural, tem como não pecar. E isso porque nenhuma criatura pode abdicar da sua condição de falta de retitude em suas ações, quando essa ação não é orientada no sentido do fim ultimo e guiada pela vontade divina. Nessa perspectiva só Deus pode não pecar, porque a sua vontade é a única que não está submetida a uma normativa superior.
A concepção ontológica e moral que caracteriza cada criatura, se repercute em suas ações, pelo menos sob a forma de potencialização da vontade: desta forma, mesmo sendo endereçada ao bem, pode falhar na escolha dos meios ou dos métodos para conseguí-lo. E essa inaptidão se traduz em ações desordenadas e defeituosas, em outras palavras, no pecado do mal. Cada criatura, assim sendo, por ser falível, pode fazer o mal, ou melhor, se furtar de fazer o bem com a finalidade ultima requerida pela moralidade.
Mas, esta possibilidade de praticar o mal, fundada ontologicamente sobre uma potencialidade a respeito do bem que não pode ser atualizada, deriva, no plano moral, do “inordinatio” do primeiro pecado, permanece no plano do possível ou forçosamente se espraia em uma forma de necessidade?
Da resposta a essa interrogação depende o caracter inelutável do mal cometido pelo homem, e, conseqüentemente, a questão essencial no âmbito da moral de sua responsabilidade: seria em verdade duvidoso considerar o homem responsável por ações que de uma forma ou de outra são influenciadas por aquele Adão que o antecedeu? Se a resposta a essa interrogação pode parecer obvia, pelo fato dos teólogos medievais, e por Tomas em particular, ponderarem que é impensável privar o ser humano da própria liberdade e responsabilidade, vale a pena considerar de perto a argumentação tomasina, porque essa permitirá esclarecer ulteriormente a articulação do mal moral individual, com o pecado universal ou de natureza transmitido por Adão a toda a raça humana.
Respondendo á pergunta se o homem pode, baseado nas suas capacidades naturais, evitar o mal, Tomas de Aquino distingue entre o “estado de natureza integra” e o estado de “natureza corrompida”, quer dizer, entre a condição de Adão inocente, ou a de não inocente, condição esta ultima que sucedeu ao pecado. No estado de inocência, o homem podia efetivamente não pecar, porque, estando de posse da justiça original, ele agia de acordo com a hierarquia ordenada pelas suas faculdades e em obediência ao fim ultimo.
Depois do pecado de Adão, no entanto, tendo-se corrompida a natureza depois da primeira “inordinatio”, o homem não tem mais como, baseando-se exclusivamente nas suas capacidades naturais, de evitar totalmente de fazer o mal. Ele pode evitar o pecado mortal fazendo uso reto da razão, ou seja, orientando a própria mente e a sua ação no sentido do fim ultimo. Não pode, contudo, abster-se totalmente do pecado venal, em outras palavras, de evitar de agir desordenadamente no sentido de fazer o bem, mesmo mantendo a razão orientada para o fim ultimo.
A este ponto, é necessário tomar ciência que estamos diante de uma forma de necessidade: o homem não pode não pecar, porque é levado a fazer o mal - e realmente o faz – uma vez que é incapaz de agir atendendo sempre, e o mais perfeitamente possível, as normas da razão e do fim ultimo. Porque se assim não fosse, significaria fazer dele um ser perfeito, e, portanto, similar a Deus.
Tomas fornece duas razões dessa necessidade “sui generis”: a primeira é a corrupção das faculdades sensitivas, as quais, como vimos, depois da primeira “inordinatio”, dirigem-se no sentido de seus próprios bens particulares; aqui a razão pode intervir e corrigir a orientação do sentido, mas não pode fazê-lo sistematicamente em todos os casos. O segundo motivo reside no fato de que a razão nem sempre esta suficientemente vigilante para poder controlar e corrigir todos os atos originados das faculdades inferiores.
A argumentação tomasina chega assim à conclusão que se o homem não é, obviamente, obrigado a pecar, pelo outro lado ele não consegue se abster disso completamente: podemos considerar que é exatamente essa a situação do ser humano a respeito da sua maneira de agir, porque é uma “necessidade de fato” que em ultima analise deve ser atribuída ao limite que está intrínseco a cada criatura, seja no plano ontológico como no moral.
É oportuno sublinhar, que na ótica tomasina esta necessidade não compromete de forma alguma a responsabilidade da ação, e não torna o homem impotente diante da obra que por ele espera: ao contrario, pretende esclarecer que o ser humano nem sempre é senhor da sua conduta, mesmo quando a sua razão está voltada ao bem supremo. Aquino evidencia, desta forma, os aspectos que existem entre o conhecimento da verdade e do bem, por um lado, e o agir voltado a sua consecução do outro, ou ainda, no plano das faculdades, entre o saber do intelecto e a adesão da vontade: É no espaço entre essas definições que a liberdade humana assume o fundamento da atitude moral e da sua responsabilidade. Cada individuo, por conseguinte, ao mesmo tempo em que é empurrado a fazer o mal pela desregulamentação esculpida na sua condição devido ao pecado de Adão, é também livre de se opor a ele, se submeter a idéia da sua ação, antes de praticá-la, à luz da razão.
Dessa forma ilumina-se a dialética entre a condição de natureza e a liberdade da pessoa: As atitudes de cada individuo não podem prescindir desta dialética, mas podem superá-la corrigindo o impacto do “inordinatio” provocado pelo pecado de Adão. Independentemente desta superação, entretanto, permanece o fato que na ótica tomasina o ser humano é sempre, e em qualquer hipótese, estritamente amarrado ao pecado original, o qual, enquanto pecado de natureza, continua na origem de todas as formas de desordem através das quais a liberdade do homem é constantemente chamada a se medir.

4 – O individuo com, e além da própria natureza.
A dialética do particular e do Universal, e da pessoa e da natureza, é o âmago da problemática moral na perspectiva de Tomas de Aquino. Cada individuo, segundo ele, queira ou não, é portador de uma natureza da qual participa e na qual encontra, tanto a sua razão de ser, quanto às determinações que sinalizam a condição de ser homem. Estas determinações são duplas: por um lado, a natureza humana é uma imagem de quem a criou, e por assim ser, é chamada a realizar a união com Deus na visão da sua essência; do outro, a natureza humana carrega consigo a marca do pecado de Adão que a privou da sua retitude e justiça original.
É importante sublinhar, nesse momento, que a ação moral se inscreve na dinâmica deste duplo relacionamento do individuo consigo mesmo. O mal Universal, que é o resultado do primeiro pecado, indica a discrepância entre o individuo e a sua própria humanidade. A teoria tomasina do pecado original exterioriza inicialmente a relação de cada individuo com a própria capacidade de fazer o mal, associando-a ao pecado de Adão, e a interioriza, depois, no pequeno espaço que existe entre o individuo e o traço de humanidade que ele carrega consigo. O individuo, entretanto, não é a humanidade, mas é chamado a aderir à própria humanidade enquanto imagem do Criador, e a superar o obstáculo que é representado pelo “inordinatio” inicial que determina a sua condição. Desse modo, o homem é chamado ao mesmo tempo a “ser como é” e a ir “alem da própria humanidade”. A primeira é a dinâmica de encontrar a si mesmo e reconhecer o valor normativo da própria humanidade, e a segunda, é a dinâmica de uma superação com o objetivo de restabelecer a ordem das faculdades orientando-as ao fim ultimo. Agir moralmente, então, pode ser entendido como um esforço para abrir uma terceira via entre a natureza intrinsecamente boa, e a condição humana de falibilidade provocada por Adão. Nesse conceito reside o fundamento daquele mal Universal que impede que o home pratique tão somente o bem.
A senda a percorrer para a concretização dessa superação, é aquela do restabelecimento da ordem das faculdades e da adequação á normativa da razão. Para Aquino, no plano das capacidades naturais do homem, não existe outra senda a não ser esta: devolver à razão o seu devido lugar e reconhecer nela o valor normativo e Universal. Nessa ótica, ele constrói a sua teoria aristotélica da temperança, uma vez que “a medida da virtude não se situa no plano quantitativo, mas resulta da adequação à normativa da razão”.
O mal, em definitivo, resulta sempre de um distanciamento da normativa ditada pela razão, ou seja, de negar a prioridade ao que, na ótica de Tomas, constitui a bagagem do ser humano, e reassumir a humanidade que participa do homem.
Isso implica, porem - como agir moralmente é algo factível a todos - que muito antes disso cada individuo faça a sua “lição de casa”, seja no que diz respeito a si mesmo, como no que diz respeito à humanidade. Resulta disso que, como o mal moral no plano pessoal é sempre atrelado ao mal Universal - cujo significado e transmissão provem do primeiro pecado, assim o bem realizado a nível individual não pode ser desvinculado da relação com a universalidade da normativa da razão por um lado, e da universalidade da humanidade do outro.
Resumindo: na ótica tomasina a raiz do mal está em uma condição que determina que o homem o realize, mas ao mesmo tempo não exige que ele o exerça, uma vez que ele pode decidir ir alem da sua condição e aderir mais firmemente à própria humanidade. Se pratica o mal, significa que está desertando da sua humanidade, e se o combate, quer dizer que ele deseja se reconciliar com ela e conseqüentemente com toda a humanidade. Com ou alem da sua finitude e falibilidade, o homem é um ser livre: livre para orientar a sua existência em um ou no outro sentido.
O objetivo do homem microcosmo - horizonte do mundo corpóreo e espiritual - está em si mesmo, porque nele reside a força que lhe permite livremente escolher se deseja viver como um animal, como um anjo, ou como homem.
Segundo Aquino, no âmbito das capacidades naturais do homem, é para a ultima opção que todo o individuo é chamado, porque, alem de refletir a si mesmo, ela corresponde à sua natureza de ser racional.
Esta parece ser a resposta de Tomas de Aquino ao mistério do mal, porque o individuo, mesmo se inscrito na condição finita do homem, esta condição não lhe esgota a natureza humana, porque pode e deve ser superada na medida que cada um, através de uma dinâmica particular de reencontro consigo mesmo, adere à própria humanidade.
Ancorada no relato do livro Gênese, e elaborada em perfeita harmonia com a tradição cristã e integrada a motivações aristotélicas, a regra da razão dionisíaca diz que a natureza é essencialmente boa. Dessa maneira a posição de Aquino, com o seu otimismo antropológico, parece deixar substancialmente intacta a razão pela qual “o homem obra o mal” que todos nos testemunhamos.
A ética de Tomas de Aquino, assim como aquela de seus contemporâneos, não podia admitir o mal desassociado ao mito da Gênese, e a resposta à pergunta que ele fazia a si mesmo, para poder desenvolver a sua teoria, permanecia inteiramente condicionada ao texto que até hoje, depois de aproximadamente 4 mil anos, continua sendo entendido como uma obra patrocinada por aquele deus vingativo chamado Jwhw.
Dessa forma, o mistério do mal pelo qual cada individuo desenvolve a própria experiência permanecia na escuridão. Continua o fato que, associando indissoluvelmente o individuo a sua própria natureza de homem, e da humanidade inteira, a resposta tomasina rasgava, pelo menos parcialmente, o véu da solidão diante do mal: Sim, o mal do individuo não é só dele. A solidariedade que existe na condição de homens e a responsabilidade que ela deve gerar a respeito de uma lição tanto individual como coletiva, mantem aberta à perspectiva na direção de uma superação – sempre possível e nunca inteiramente realizada – do mal, porque esse, mesmo se é profundamente humano, não é inelutável.
Desse modo, se desvencilharmos a ótica tomasina (este teólogo viveu de 1225 a 1256, logo, 564 antes do trabalho de Charles Darwin), do livro Gênese e a endereçarmos ao conceito do design inteligente, sem marginalizar a teoria da evolução porque são partes integrantes do mesmo cenário, é um mero exercício mental concluir que “a raiz do mal” reside no fato que o espírito que habita o homem é o mesmo que há milhões de anos foi agregado pelos engenheiros do espaço àquele que mais tarde, utilizando o sílex, ainda aguardava que lhe fossem impressas novas expressões biológicas.
A primeira característica peculiar dos hominídeos foi à aquisição - aprendizado - da locomoção bípede e de uma posição corpórea sempre mais ereta.Uma conseqüência disso foi à completa liberação das mãos que desta forma puderam inicialmente ser utilizadas para fins pessoais e em seguidas para a fabricação de utensílios para a sua defesa, mesmo se inicialmente só utilizavam materiais sem modificá-los, coisa que até hoje fazem os chimpanzés e outros símios.
A segunda característica, também típica dos hominídeos, mas que envolveu maiormente só o gênero “homo”, foi à expansão do cérebro. No arco de três milhões de anos o volume encefálico passou dos 400-500 ml. dos Australopithecus - pouco superior daquele dos atuais chimpanzés - aos 700-800 ml. do “homo habilis”, aos 900-1000 do “homo erectus” até a media de 1200-1300 ml. do atual “homo sapiens”.
Mas não é só a capacidade encefálica que determina o índice de inteligência. Para criar espaço ao sempre maior número de neurônios requerido pelo crescente aumento de informações e conseqüente memorização, o cérebro dos hominídeos ganhou uma série de circunvalações e de fissuras muito maior do que possuía antes, como é demonstrado pela comparação entre o cérebro do chimpanzé e do homem moderno.

Cérebro de chimpanzé Cérebro do homem moderno

Aqueles hominídeos que para conquistar seu espaço no ambiente inóspito da savana, antes de aprenderem a caçar, por longo tempo foram alimento dos predadores, tiveram que desenvolver adequados meios de defesa para garantir a sobrevivência e a reprodução da espécie.
Inicialmente, suas armas se constituíam de galhos de arvores, ossos fêmures de animais e pedras, até na idade do sílex aprenderem a trabalhá-las para transformá-las em pontas de laças e instrumentos de corte. Desse modo se instruíram a prever os perigos e a desenvolver a cultura para com eles coexistir, ou quando imprescindível, a enfrentá-los com a segurança permissível. Os perigos, entretanto, não advinham somente dos fenômenos da natureza, dos predadores, ou do enfrentamento com os grandes animais para fazer da sua carne alimento e da pele abrigos para o frio, porque em sua luta pela sobrevivência não havia “espaço” para se respeitarem mutuamente. O mais forte suprimia o mais fraco, animal ou homem que fosse, se este possuía o que ele necessitava, não se importando se era alimento, abrigo ou mulher, assim como os lobos de uma alcatéia disputam até a morte a liderança ou uma fêmea qualquer.
A vivencia destes episódios ao longo dos milênios, esculpiu no “constrito racional” daqueles seres, na medida em que se repetiam, os critérios que, transferindo-se para principio espiritual que os animava – o inconsciente - pouco a pouco forjou seus instintos, os impulsos irreflexos que até hoje, despidos dos aspectos não mais necessários e enriquecido pelos aperfeiçoamentos resultantes das sucessivas experiências vividas em cada reencarnação, determinam em cada individuo, de acordo com as poucas ou muitas alterações inseridas pelos exemplos morais que viu acontecer ao seu redor, a sua conduta.
Sigmund Freud, dizia que os instintos são pressões que dirigem um homem para determinados fins particulares, e quando usava esse termo não se referia aos complexos padrões herdados dos animais inferiores, mas aos que se tornaram seus equivalente humanos depois que o homem, ao longo da sua caminhada, os depurou.
Sabemos, entretanto, pelo que é nos dito do Alto, que no espaço da alma que abriga o inconsciente, nada é perdido e coisa nenhuma se transforma. Simplesmente, caindo em desuso, permanece adormecido, mas apto a despertar no momento em que seu conteúdo se torna necessário para enfrentar as dificuldades que uma mudança de habitat ou de ambiente social pode provocar. Sua maior ou menor veemência, entretanto, é estabelecida pela razão, ou seja, o que o homem, em termos racionais, impõe a si mesmo.
Se um animal, um cão sem dono por exemplo, agride alguém, de quem é a culpa? Com certeza daquele que foi mordido porque não se acautelou. Mas se a agressão parte de um homem? A diferença reside no fato que enquanto o cão é movido só por instintos, o homem, de posse da inteligência, refletindo em relação as suas ações, raciocina e raciocinando (considerando que no mundo os parâmetros entre o bem e o mal estão bem definidos), a não ser que esteja mentalmente enfermo, tem a capacidade de discernir se a sua ação é correta ou incorreta, em outras palavras boa ou má. Desse modo, quando agindo incorretamente prejudica seu semelhante, merece ser reprimido e castigado. Para isso existem as leis. Estas, como sabemos, surgem do convívio social, de onde o ser humano deve adquirir seus valores, sua educação e cultura, e através dessas noções dar alguma direção, algum objetivo, alguma utilidade ou sentido social à sua vida.
Freud, que seu malgrado não estava muito longe da verdade, dizia que no homem os instintos podem sofrem grandes alterações devido a sua vontade, a sua inteligência, e pelo ambiente em que vive, mas estas alterações só podem inibi-los, camuflá-los ou transformá-los, mas jamais destruí-los.
Como vimos, a escada que o homem tem que galgar (a sua revelia porque é lei divina), para seguir seu caminho rumo a angelitude, possui uma infinidade de degraus, e cada degrau corresponde a uma imperfeição, melhor dizendo, a um daqueles instintos que, de acordo com a situação que vive, tentando satisfazer a si próprio, prejudica mesmo minimamente seu semelhante. Contudo, como os instintos jamais são eliminados, a não ser por ocasião da terceira morte, o homem, utilizando seu intelecto, pela repetitividade de “boas obras”, transforma suas ações em novos instintos e, cuidando para que somente estes impulsionem seus atos do dia a dia, deixa que os velhos durmam um sono cada vez mais profundo até não mais terem como despertar. Assim sendo, retornando à ótica tomasina, se continua praticando o mal, significa que está desertando da porção de racionalidade que já enriqueceu o seu Eu, e se o combate, quer dizer que deseja se reconciliar com ela e por conseguinte com toda a humanidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário